Compor

Eu sou de compor com passos
Esquecer espaços, e me perder em laços
Que eu mesmo amarrei

A inocência persistente
É marca da loucura?
Ou presente,
Capaz de me fazer viver

Eu sou de compor memórias
Esquecer histórias
e me apaixonar por detalhes
Que eu mesmo criei

E esse choro recorrente
Pulsando no peito
Maldição ou benção?
Ou só função do querer

Exorcismo

circleheb

 

 

 

Ele encara a tela do seu computador, pisca e boceja algumas vezes pensando em como vai escrever esta história, afinal a escrita é outro tipo de retrato da realidade. Como uma pintura, é esta a comparação que ele está fazendo agora, a escrita tem o poder de reorganizar a realidade de uma forma mais compreensível. E esse também é o ponto problemático, deve se tomar cuidado com os termos que vai escolher, por que se autodenominar e se definir é uma coisa muito poderosa.

 

Recebi um pedido de ajuda hoje, aquele tipo de coisa que não pode ser ignorado sem algumas consequências sérias, do tipo sincronicidade brava implorando pra ser ouvida, acordei e fiz o básico do dia, alguns exercícios mentais, uma xícara de café (infelizmente fraco, horrivelmente frio), era uma daquelas manhãs calorentas que eu odeio, em cinco minutos acordado já podia sentir o cheiro de suor azedo da noite anterior, que seja, por pura rotina saco o tarot da sua caixa e embaralho; três cartas:

A Torre,

Cavaleiro de Espadas,

Dez de Paus  – mau presságio, penso em quanto guardo o significado das cartas, e elas dentro da caixa

 

Uma pausa enquanto ele busca uma cerveja, às vezes é melhor estar bêbado para aplicar a dose certa de fantasia a uma escrita realista. É uma cerveja merecida também, o desgaste mental do final de semana beirou o absurdo, e ele ainda não terminou de desfazer as malas que levou pra viagem, cheia de velhos truques e quinquilharias. Ela está aberta no canto do quarto. A roupa dele tem cheiro de verbena, provavelmente tenha vazado um dos óleos essenciais.

O resto do dia correu naquela velocidade de uma tortura bem aplicada no inferno, entre as burocracias do trabalho normal, e a chateação das conduções, havia, contudo aquele peso no fundo do estômago, uma certeza que as coisas iriam complicar em breve.

Quando voltei a minha casa que pude ler o e-mail de meu instrutor, seco e claro como ele costumava a ser. Em poucas palavras ele explicou que um de seus alunos recentes, de uma cidade praiana próxima a minha estava mentalmente perturbado devido a um ritual, e talvez abuso de drogas concomitante, e eu devia ir até lá ajudá-lo. Parecia o típico modo de agir de um novato que aprendeu a fazer algumas coisas, invocar um demônio e barganhar com ele quando se está desesperado não é o método mais aconselhável e seguro de se agir. As parcas anotações do diário disponíveis, e as fotos que a namorada dele tiraram depois do acontecido exalavam essas emoções, descaso, desespero, e uma vontade imensa de autopunição que poderia ser qualificada como o pior tipo de atitude mental para uma situação igual essa.

Agora cabia a mim, escolher como abordar a situação, precisaria escolher qual faceta iria usar pra resolver isto, não que me restassem muitas opções, num dia normal eu iria como o psicólogo e amigo, e convenceria que o trauma sofrido com a experiência era parte de um psicodrama que ele precisava viver. Agora esse não era um cenário que gosto de explorar, eu teria que vestir uma máscara um pouco mais pesada – o mago e exorcista, o eixo da roda – citando o velho livro, entretanto esta é uma faceta um tanto quanto teatral, um tanto cheia de limitações práticas, e também significa desenterrar uma penca de coisas de prateleiras empoeiradas, e comprar uma série de paramentos. Entretanto era a única escolha razoável para resolver esse tipo de situação, sem ferrar com a vida do pobre coitado e a minha por meses.

Boa parte do sábado foi das compras, perfumes e essências e alguns metros de linho, as velas das cores certas eram importantes também. Isso feito a parte da tarde foi dada toda ao estudo e preparação, o que posso dizer, não sou o mais metódico dos praticantes da Arte (termo garboso que adoro), portanto faria o seguinte, invocaria um demônio de maior hierarquia, um jeito rápido e sujo de resolver o problema, isso envolvia criar um círculo de proteção com o tecido que comprei e um triângulo de invocação, e decorar a chave certa de um livro antigo chamado As Clavículas de Salomão

 

Ele largou o texto por um tempo, o suficiente para colocar os paramentos mais importantes de volta aos seus lugares, a espada e a faca ritualística voltaram pro baú da onde raramente saiam, ele também guarda o robe preto e a coroa prateada de Verbena, no armário em baixo das outras roupas. Junto com o sobretudo que usou e os anéis que estavam na mochila.

 

Precisaria agora de uma carona para descer a serra, de alguma forma a intuição me avisou para levar alguém a tira colo.

Jurei que demoraria mais para encontrar companhia mas um amigo estava prontamente disponível, até atendeu o celular no primeiro toque.  Entre as diversas qualidades que esta criatura única possui e são merecedoras do meu amor a melhor de todas é não se importar com minhas excentricidades, ficou combinado que ele me buscaria as 23:00. Agora eu precisava trabalhar minha primeira impressão, sobretudo, roupas pretas, anéis, cabelo desgrenhado, fui compondo um visual fora do dia a dia, e aos poucos caminhando para aquela personalidade que não era minha, depois disso, era hora da primeira invocação, diante do espelho me encarei fixamente e recitei por várias vezes:

 

Tu que és eu mesmo, além de tudo meu;
Sem natureza, inominado, ateu;
Que quando o mais se esfuma, ficas no crisol;
Tu que és o segredo e o coração do Sol;
Tu que és a escondida fonte do universo;
Tu solitário, real fogo no bastão imerso;
Sempre abrasando; tu que és a só semente;
De liberdade, vida, amor e luz eternamente;
Tu, além da visão e da palavra;
Tu eu invoco; e assim meu fogo lavra!
Tu eu invoco, minha vida, meu farol,
Tu que és o segredo e o coração do Sol
E aquele arcano dos arcanos santo
Do qual eu sou veículo e sou manto
Demonstra teu terrível, doce brilho:
Aparece, como é lei, neste teu filho!

 

Estava então duas vezes vestido.

Escutei a buzina do carro, era uma noite tranquila de primavera, fomos conversando coisas amenas no caminho, e ouvindo um pouco de música, a chuva começou quando terminamos de descer a serra.  A casa que estava procurando era uma casa de esquina, não muito grande. Contudo no estado mental que me encontrava naquele momento já enxergava coisas que não faziam mais parte do mundo ordinário. A aura da casa estava levemente assustada, esse é preço de se mexer com o invisível, costumamos a perturbar até os objetos inanimados que estão próximos de nós.

Desci do carro e toquei a campainha, foi a namorada que me atendeu. Pensei comigo mesmo – estou fudido – os olhos dela, a atitude, não precisei nem trocar as primeiras palavras, não foi necessário nem escutar um simples boa noite sair dos seus lábios. Eu conseguia sentir a influências que aquele ambiente pestilento tinha causado, mais um pouco e precisaria envolver ela no ritual, e definitivamente essa era a última coisa que gostaria. Portanto, escutei ela dizer:

-Boa Noite

Respondi: – Fui mandado aqui pra tratar do Frater NAMA – ela me olhou surpresa como se tivesse saído de um livro

-O Rodr – Interrompi bruscamente – Não quero saber o nome dele, e preciso que você saia daqui.

O resto da conversa não foi em um tom agradável, ela estava resistindo a minha presença como sabia que ele também estaria.  Com muito custo convenci a me dizer onde ele estava (num quarto dos fundos daquela casa térrea) e sair com meu amigo. Precisava deles fora de casa até o amanhecer, cheguei de propósito a meia noite, a hora das bruxas, e iria preparar o ritual para começar na hora do diabo, às três da manhã. Agora enquanto ela saia eu caminhava pro quarto do fundo, a casa cheirava a mofo, devia fazer uma semana desde a invocação, e a garota estava ali desde o primeiro dia, e pelo jeito não tinha conseguido mexer em nada nem fazer comida. A casa estava em completo abandono, reflexo do que tinha ocorrido com seu dono com certeza.

Encontrei o quarto dos fundos, ele estava de porta fechada, não foi surpresa nenhuma que ao abrir a porta eu encontrasse ele na cama, vomito, suor e urina predominavam no quarto, mas o outro cheiro como nota de fundo era fragrante. O medo que exalava dos poros dele, amontoado no canto do quarto os aparatos que tinha usado a roupa pelo que parece era ainda a mesma que ele tinha usado por baixo do robe da invocação. Comecei uma reza em latim, não que fosse necessário Latim, mas veja esse clima de exorcismo pede uma certa tradicionalidade, ele se incomodou profundamente e começou a tremer. Certo que ele já não tentaria me morder ou reagiria fisicamente, o levei para o banheiro, e coloquei debaixo da agua. Tinha carregado um fitilho vermelho, fiz um pentagrama grande na porta do banheiro usando ele e durex, assim garantiria que ele ficasse por ali enquanto tomava conta do quarto.

Parti para a arrumação, limpei o quarto da forma mais mundana possível, e foi como se estivesse me arrastando, varri, usei desinfetante, passei pano, depois sal nos cantos, e evocações elementais, perfumes. Segui com a montagem do círculo e do triângulo de invocação no lugar adequado, a estagnação do lugar brigava comigo a cada movimento e cada passo, era um exercício extenuante de vontade continuar a fazer as coisas, mas como meu propósito era bem definido prossegui.

Agora sim vem a parte complicada, tirei o garoto do chuveiro, e o vesti em um robe branco, com os símbolos de proteção. Para mim era a hora de colocar a terceira vestimenta, coloquei o robe preto, a coroa de verbena, e comecei a acender os incensos, o objetivo desses era além da aromatização criar fumaça suficiente para facilitar a visualização das coisas que se projetassem em minha imaginação. Tomei o ácido lisérgico nesse momento, sim estaria me arriscando tanto quanto ele, porém eu tinha experiência nesse tipo de procedimento.  Segui concentração e cânticos, no começo graves e aumentando e velocidade. Quando minha consciência tinha se movido para outro lugar dei inicio a invocação do príncipe e do arquiduque demoníacos, os chamei e tornei a chamar pelos nomes sagrados e profanos, usei seus sigilos que tinha traçado em casa para garantir que viessem.

E esse processo de repetição até a loucura é complexo, para ver o que não está ali é preciso comprometer um pouco de sua sanidade, e eu soube que tinha feito certo quando escutei o grito agudo do garoto, ele deve ter escutado a aproximação, eu senti o cheiro, jasmim, cravos, e eu via, os dois, um vestido e dourado o outro em verde, em formas que pareciam humanos, um como um velho cego, o outro como um senhor de terno, nem um pouco satisfeitos.

Eles, não falaram, mas eu entendi dentro de mim, que queriam que eu pedisse logo o que queria. Sorri, o padrão das invocações é esse, pedintes, falando com a nobreza. Isso exigia uma atitude ousada, levantei a espada que tinha no círculo e ameacei prende-los e torturá-los, ameacei muito mais do que podia fazer, mas um bom blefe exige uma atitude meio radical.

Ouvi outros gritos, agora eram além do meu colega de estudos deitado no chão, as duas entidades também gritavam, e mudavam de forma claro, para uma menos agradável. Demônios são o espelho negativo da humanidade, e o que vi não me agradou nada, o cheiro mudou, parecia talco que se passa em recém-nascidos, e carne queimada junto raiva, as cores também se alteraram pra mim. As imagens começaram a aparecer na névoa, pessoas sofrendo, amigos chorando e morte. Isso foi o bastante pra me irritar, abri uma caixa com um cântico hebraico, as criaturas pararam, com medo, por dentro das três roupas que vestia eu tremia. O outro eu o personagem sabia que tinha que continuar o blefe, ordenei que eles removessem a influência do garoto, ordenei que o contrato com o outro demônio fosse revogado, depois de uma conclusão não muito feliz deles, os dispensei, e fiz o processo para terminar a invocação.

O novato nesse momento já estava conseguindo falar, ele me agradeceu, e ao mesmo tempo ficou triste. Me contou que  tinha implorado um favor para a cura de seu pai que estava em estado terminal. Caralho como isso me deixou puto, talvez não devesse ter cuspido aquelas palavras na cara dele como eu fiz, mas aquele egoísta cuzão, não aceitava perder o pai, por isso quem sabe deixar o velho com um pouco mais de agonia com um ritual enquanto trazia problemas pra todo mundo enquanto se refugiava num estado mental infantilóide.

Minha carona chegou pouco tempo depois, eu subi a serra e dormi o dia todo sem arrumar nada.

 

Deitou em sua cama novamente depois de ter acabado de digitar e fugiu para o sono abençoado, e pra sonhos menos estranhos que a realidade que vivia.